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17 de março de 2010

Flores do Mal

Fonte:

France Vernier Cidade e modernidade nas "flores
do mal" de baudelaire

A solidão do homem no mundo nunca é tão sensível quanto na cidade;
aliás, existia ela antes do desenvolvimento da civilização urbana? "O Estrangeiro"
(1942), de Albert Camus (1913-1960) é um romance citadino, como "A Náusea"
(1938), de Jean- Paul Sartre (1905-1980), e podemos nos perguntar se o grande
erro dos românticos não foi o de transplantar artificialmente o mal-estar das suas
vidas urbanas – de fato – para a Natureza, onde em conseqüência ele soa falso.
Feridos eles também pelo mistério e pela absurdidade, eles arrastaram sua ferida
mal compreendida pelos vales e refúgios nos quais ela perdia todo sentido. “Mal
do século”, sim, mas, Baudelaire foi o único, antes de Rimbaud (1854-1891), a
sentir que esse século era por excelência aquele da civilização urbana. Ele chegou
mesmo a sentir o aspecto mais dificilmente perceptível, sem dúvida, na sua época,
talvez o mais profundo, a se julgar pelos seus desenvolvimentos. Trata-se do esfacelamento do indivíduo no espaço e no tempo: a cidade é o lugar onde não se escolhem os encontros, onde o passante vem a você bruscamente, suscitando todos
os movimentos da sensibilidade sem que ela tenha tido tempo de se premunir.
(“Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste”, velhinhas, velhos, passante,
mendiga...). Lugar onde as solicitações constantes e indiscretas da publicidade
excitam um após o outro a fome, o desejo ou o sono (“A prostituição brilha nas
ruas”), onde, como se espantará o próprio Apollinaire, “o indivíduo não é senão
uma partícula de seres com corpos enormes”, onde o tempo por si mesmo se
fragmenta e se impõe, insensível à duração interior como à ordem “natural” do dia
e da noite: campainhas, horários de encerramento, transportes... A cidade aparece
como forma concreta e invasiva de uma ameaça desmedida para o homem e
no entanto criada por ele; o lugar onde ele padece e responde, até às vezes perder
consciência de si. “Ferido pelo mistério e pela absurdidade”, eis precisamente
uma dessas “situações do homem” que, escreve todavia Baudelaire no Salão de
1846, “os artistas do passado desdenharam ou não conheceram” e que “é necessário
então conhecer antes de tudo”. Essa última afirmação é extremamente
importante: é a partir dela que se explica a poética de Baudelaire e sua solidão
em seu século; decerto a acuidade tão lúcida dessa angústia já, ainda, moderna
é em si mesma impressionante, mas o que é de ainda maior conseqüência é essa
consciência de que o papel do artista não pode ser o de eludir essa angústia no
refúgio do sonho ou do passado e sim o de “conhecê-la”, de tomá-la por objeto.

Assim, a arte se torna essencialmente um modo de transformação e não mais de
expressão: “feitiçaria evocatória”, obra do “perfeito químico”, essas metáforas
indicam uma relação nova da arte com o mundo, que é ação sobre ele e não
mais seu reflexo ou eco.

(...)
Mas não é só no plano visual que se opera essa transmutação: uma das
dominantes, agora familiar, da sensibilidade moderna é a impressão que o indivíduo
tem de ter sido desapossado do mundo, que uma harmonia imaginária
(vinda de Deus ou da ciência, que importa?) parecia há muito tempo organizar
em torno dele; os objetos tomaram uma monstruosa estranheza – aquela mesma
que o Nouveau Roman tenta tornar sensível; o tempo perdeu sua ilusória continuidade
para se fragmentar em multiplicidades de tempos inconciliáveis e em
instantes fechados sem relação entre si; enfim, a harmonia interior do indivíduo,
aquela que ele acreditou por muito tempo possuir e que lhe dava o domínio de si
e a unidade, é ameaçada precisamente pelas próprias condições da vida urbana
moderna, espécie de violação permanente que ela exerce sobre o indivíduo pela
rápida e absurda sucessão de suas solicitações e de seus constrangimentos.
Essa impressão, Baudelaire a ressente profundamente, e ela é o tema
quase constante, sob suas diversas modalidades, de Flores do Mal.

Assim "As Flores do Mal", sem jamais descrever a cidade, e mesmo
não a designando senão raramente, dela são intimamente penetrados: porque
Baudelaire soube confundir na “tenebrosa e profunda unidade” de uma sensação
o espetáculo da cidade e seu novo e misterioso poder sobre o homem, "As Flores
do Mal" são sem dúvida a coletânea de poemas mais intensamente citadina do
século XIX.

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