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25 de março de 2010

Atenção!

Caros alunos

Não haverá aula na próxima terça feira, dia 30 de março. Nos veremos na terça-feira, depois da Páscoa.
Bom feriado para todos!
Adriana

22 de março de 2010

ATENÇÃO

A partir de amanhã, as aulas acontecerão na sala imediatamente ao lado do xérox do segundo andar.
Até lá!
Adriana

Impressionismo e modernidade

Fonte: Carlos Vidal em http://5dias.net/2010/02/21/tudo-o-que-tem-e-deve-saber-sobre-impressionismo-e-monet-particularmente-a-matriz-da-nossa-existencia-moderna/

"Espaço, atmosfera, realidade e conhecimento, no Impressionismo tornam-se interactivos, logo o princípio renascentista do quadro-janela (Alberti) esfuma-se, bem como a importância que no Renascimento adquiriu a perspectiva científica (Alberti, Brunelleschi). Este tópico é extremamente importante, pois muitos leitores pensam na perspectiva como fundação da modernidade, o que é de certo modo errado, pois ao longo dos séculos (de Caravaggio ao Impressionismo, passando por Velázquez e Manet) e perspectiva é aquilo que os pintores sempre quiseram violar! (dirá Clement Greenberg que a essência da pintura é a bidimensionalidade e a planitude, mas esta é outra história).

Concluindo, o espaço impressionista é atmosférico, cromático, não-perspéctico ou, de outro modo, aspirante a uma tridimensionalidade óptica (apenas óptica!). Se o cérebro em Bergson é campo de acção, na pintura é a retina que é esse campo de cruzamentos e supressão de distâncias entre observador e coisa observada. Outra das razões porque a pintura impressionista é fundadora da modernidade, radica na sua intenção de criar algo não dependente da realidade e dos objectos."

Monet e a impressão

"Saindo para pintar, esquece-te dos objectos que tens diante de ti, seja uma árvore, uma casa, um campo ou qualquer que seja o objecto. Pensa apenas que está aqui um pequeno quadrado azul, além um alongado rosa, aqui uma faixa amarela, e pinta tudo como se te afigura, com cor e forma exacta, até que a pintura emerja como a tua imediata impressão da cena que tens defronte”. Monet

A Catedral de Rouen, segundo Monet




Proust par lui-même.

Fonte: http://sites.br.inter.net/elzacaravana/?id=2736
Marcel Proust, em 1913, numa entrevista, afirmou:

“Minha obra é dominada pela distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária... Para mim, a memória voluntária, que é, sobretudo, uma memória de inteligência e dos olhos, não nos dá do passado senão faces sem verdade; mas um aroma, um sabor reencontrados, em diferentes circunstâncias, revela-nos, mesmo contra nossa vontade, o passado, sentimos como esse passado era diferente do que acreditávamos recordar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem verdade. Já, no primeiro volume, ver-se-á o personagem que conta, que diz “Eu”, e que não sou eu, encontrar subitamente anos, jardins, seres esquecidos, no gosto de um gole de chá onde ele encontrou um pedaço de madeleine ; sem dúvida ele se lembrava dela, mas sem seu calor, sem seu charme; eu pude fazê-lo dizer que como nesse pequeno jogo japonês onde se molham indistintos pedacinhos de papel que, logo mergulhados na bacia, se estiram, se contornam, se tornam flores, personagens, todas as flores de seu jardim, e as ninféias do Vivonne e a boa gente da aldeia, e suas pequenas moradias e a igreja, e toda Combray e seus arredores, tudo isso, que toma forma e solidez, saiu, cidades e jardins, de sua taça de chá.
Veja, não é senão às lembranças involuntárias que o artista deveria pedir a matéria prima de sua obra. Em primeiro lugar, precisamente porque elas são involuntárias , porque se formam delas mesmas, atraídas pela semelhança de um minuto idêntico, elas têm sozinha a marca de autenticidade. Depois elas nos devolvem as coisas numa dose exata de memória e de esquecimento.”

Proust, um impressionista

“Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” (Marcel Proust, in "No Caminho de Swann").


Para Proust, o tempo é forma sob a qual nós entramos na posse e tomamos consciência da nossa vida espiritual, da nossa natureza viva, que é a antítese da matería morte e de mecânica rígida. O que somos passamos a se-lo não só no tempo, mas através do tempo. Somos não só a soma dos momentos individuais da nossa vida, mas o resultado do aspecto em mutação constante que eles adquirem através de cada novo momento. O tempo que passou não nos deixa mais pobres; é, ao contrário, extamente este tempo que enche as nossas vidas de conteúdo. A existência adquire verdadeira vida, movimento, cor, transparencia ideal e um conteudo espiritual à custa da perspectiva de um presente que é o resultado do nosso passado. Não há outra felicidade senão a da recordação e do reviver, da ressurreição e conquista do tempo que passou e se perdeu, porque, como diz Proust, os verdadeiros paraísos são paraísos perdidos. Proust é o primeiro que vê na contemplação, na recordação e na arte, não só uma forma possível, mas a única forma possível em que se pode possuir a vida. (Hauser)

Proust, a memória e o tempo

"Se no tempo nos movimentamos, se nos instantes caminhamos rumo ao conhecimento ou ao desconhecimento de nós mesmos, é nessa paisagem definida e sinuosa que Proust pretende se (nos) resgatar, colher, como lírios, antigos, porém renovados pela busca, pelo olhar artístico forte para restaurar um instante que parecia desimportante quando baralhado a tantos outros. O instante da rememoração é essencial para o francês. Para ele não se pode saber e viver ao mesmo tempo, pois no momento do viver estamos demasiado ocupados, identificados, sugados pelas percepções falsamente reais do dia-a-dia. Depois, na recordação, podemos filtrar, tirar das situações as pérolas capazes de nos salvar do ciclo do hábito, que faz com que o garoto não perceba seu quarto em Combray, e cuja ausência não o deixa sentir-se à vontade no quarto de Balbec, região litorânea na qual passa as suas primeiras férias do romance na companhia da avó, cuja ausência se fará dolorosa, densamente doída no retorno à Balbec, aí já sem ela, então falecida, na qual se operará o encontro definitivo com o vazio, produzido, tecido, configurado pelo tempo, que, junto com sua avó, arrastou, ou tentou arrastar, o sentimento que os fazia próximos _ não percebido em sua real dimensão por Marcel quando estava ela viva, mas visto em sua totalidade depois de ela morta _, mas que resiste, pois é salvo pela arte, que o reporta ao presente, transformado palavra, transformado beleza, transformado literatura. Arte" (Carlos Augusto Silva)

Filosofia impressionista para Hauser

"O conceito de ilusão que enraíza na experiencia de que os nossos sentimentos e impressões, estados de espírito e idéias estão a mudar constantemente, que a realidade se nos revela em formas sempre a variar, nunca estáveis, que cada impressão que dela recebemos é simultaneamente conhecimento e ilusão, é uma idéia impressionista, e a noção freudiana correspondente, de que os homens passam a sua vida escondidos de si próprios e dos outros, dificilmente se conceberia antes do advento do impressionismo. O impressionismo é o estilo em que o pensamento e a arte do período se exprimem. Toda a filosofia das últimas décadas do século se filia nele. Relativismo, subjetivismo, psicologismo, historicismo, o principio da atomização do mundo do espírito e a doutrina da natureza perspectiva da verdade são elementos comuns às teorias de Nietzsche e Bergson..."

"Cada verdade tem sua atualidade; só em situações perfeitamente definidas é válida. Uma afirmação pode ser verdadeira em si e, no entanto, absolutamente desprovida de sentido em certas circunstâncias, por não estar relacionada a coisa alguma (...) A realidade é uma relação sujeito-objeto não analisável, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis, independentemente uns dos outros. Nós mudamos e o mundo de objetos muda conosco. "

Filosofia de Bergson: a unicidade do momento, que nunca antes existira e nunca se repetirá foi a experiencia fundamental do século XIX.

Modernidade e filosofia - esquema de aula.

Sistematização das idéias de Alexandre Araújo Costa, contidas no texto: O olho que não se vê.

1. Crença na realidade objetiva do mundo: a teoria deve representar o mundo, que é percebido como um fato objetivo, a partir da contemplação. A arte deve apenas representar o mundo em imagens, mantendo-se fiel a ele, de modo que a relação que se estabelece é de paráfrase.

2. Modernidade (século XVII): a verdade continua sendo uma descrição fiel da realidade, e a arte deve representar esta verdade. Compete então ao homem compreender o mundo, desvendar suas leis, descobrir o seu modo de funcionamento. O artista ou um filósofo não cria algo novo, mas apenas desvela uma realidade pré-existente. Aquele que conhece a realidade - filósofo ou artista - não inventa o mundo, mas inventa formas novas para representá-lo, como Leonardo, com seu sfumato, que visava tão somente a tradução em imagens de efeitos objetivos e reais. A partir de um olhar objetivo, é possível descrever o mundo - daí o uso recorrente de palavras como reflexo, tradução, representação, mimésis. Não havia ainda a valorização da razão como instrumento de conhecimento: a realidade podia conter aspectos insondáveis à razão, exigindo outras formas de entendimento, como o misticismo e a teologia. Acreditava-se, por exemplo, na existencia de um intelecto acima da razão, capaz de conhecer o mundo, como defendia Nicolau de Cusa. Com o tempo, a razão passou a ser vista como a unica forma de se compreender o mundo. A verdade tem caráter objetivo, pois somente pode haver uma descrição correta do mundo, mesmo que o conhecimento dessa verdade caiba apenas a alguns iluminados.

3. Descartes: negação da tradição e da autoridade como fonte de verdade. Se tudo o que está fora do sujeito é passível de dúvida, somente o que está dentro do sujeito pode servir de certeza objetiva. Cogito ergo sum: posso duvidar de tudo, menos do meu pensamento e subjetividade. A minha subjetividade pode me levar à verdade. Não se trata de acreditar que a realidade é uma função da subjetividade. A subjetividade entendida como universal: o que significa que há verdades que são admitidas por todas as subjetividades, que há certas normas que são aceitas por todos os sujeitos. "Assim, a busca de critérios objetivos já não era mais a procura de um ponto de partida fixo no mundo, mas de um ponto de contato entre todas as subjetividades". Segundo Alexandre Araújo Costa, "a universalização da subjetividade é via moderna para garantir a objetividade. " Primeiro princípio cartesiano: jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal. Tem-se a valorização da evidência empírica, alcançada através da razão. A razão era entendida como um instrumento absoluto, sobre o qual não se poderia tematizar: o pensar era uma realidade objetiva. Penso, logo existo. Com Descartes, a razão passa a ser o critério único para todo o pensamento humano.

4. Racionalidade de Descartes: inaugura um novo modo de pensar o mundo, mas não inaugurou um novo modo de pensar o próprio pensamento. Com Descartes, estabeleceu-se a utopia de que era possível observar o mundo a partir de uma perspectiva objetiva. A verdade seria então a representação única de um mundo objetivo: "como há apenas uma verdade, o conhecimento verdadeiro não pode ser validamente contestado e duas verdades nunca podem entrar em contradição".

5. Kant e Hume: colocaram em xeque a objetividade de nossas representações do mundo. Para Kant, o nosso conhecimento não é uma representação objetiva e direta do mundo, mas um fruto do modo humano de olhar o mundo.

6. Impressionismo: retome a filosofia de Kant, porque considera que é preciso pintar exatamente o que os olhos vêem. O objeto da pintura já não é mais o real, mas o modo como o artista enxerga o real, num determinado momento. O que o impressionismo faz é: não se trata mais de pintar o mundo, mas de pintar o modo como o homem vê o mundo, de pintar a luz e deixar que o olhar do observador construa a imagem. Segundo Alexandre Costa, a modernidade "mudou completamente o objeto de representação, mas, tal como Kant, manteve intangível o ideal de uma objetividade: o objeto não é o mundo, mas o modo de olhar. Porém, a objetividade do modo de olhar garante a objetividade das imagens. De toda forma, os impressionistas ainda supõem pintar o modo como vemos a luz, e, sendo a luz externa a nós, a dualidade sujeito objeto ainda permanece no centro de sua concepção, pois a obra de arte ainda tem uma referência externa a ela mesma. A arte impressionista ainda não é a constituição de objetos, mas a representação de objetos, motivo pelo qual o impressionismo representa a modernidade madura e não a sua superação".

7. É só depois, no pós-impressionismo, que aparece a idéia de que a racionalidade não é racional, que a pretensa objetividade racional não é uma forma objetiva de ver o mundo, mas uma certa forma de inventar o mundo. "Daí para a percepção de que o artista não refletia o mundo, mas criava obras que constituíam um objeto independente no mundo, não faltava muito. E foi esse passo que abriu caminho para a arte abstrata e conceitual do século XX"

Impressionismo e filosofia

"...A objetividade mudou o foco: da objetividade frente às coisas, chegamos à objetividade frente aos homens. De uma racionalidade vista como o modo correto de perceber as coisas objetivas, partimos para uma racionalidade que é o modo objetivo como os homens percebem as coisas. Apesar da grande mudança no sentido, a palavra permaneceu a mesma: a Racionalidade.

Voltando ao paralelo com as artes, é possível identificar essa radicalização kantiana no impressionismo do final do século XIX. Monet, Renoir, Pissarro, todos eles perceberam que a pintura acadêmica de Ingres, inspirada ainda pelos princípios do Renascimento, não mostravam o mundo como ele é. A perspectiva renascentista e os modos tradicionais de pintar foram percebidos como uma série de convenções que tentavam conquistar a ilusão de tridimensionalidade a partir de jogos de claro e escuro, jogos nos quais a verdadeira luz se perdia, pois sem a gradação do claro e do escuro era impossível construir a perspectiva. Com esse tipo de técnica é impossível, por exemplo, pintar uma paisagem ao ar livre, e isso é algo que nós vemos.

Para os impressionistas, era preciso pintar exatamente o que o olho enxerga, e eles se esforçaram para pintar a luz exatamente como o olho humano a vê. Para quem acredita na objetividade do mundo, as várias pinturas de Monet da Catedral de Rouen são uma repetição talvez entediante, de visões sobre um mesmo objeto. Mas Monet pinta a luz, e a luz é diferente em cada uma das situações... a catedral já não é o objeto da pintura., mas o modo como o próprio Monet enxerga a luz em determinadas condições atmosféricas. E aí está a revolução: não se tratava de pintar o mundo, mas de pintar o modo como o homem via o mundo, de pintar a luz (que é o que vemos) e deixar que o olhar do observador construísse a imagem. Uma pintura de Seurat ou de Signac, que levaram ao extremo esse objetivo, não passa de uma série de pontos de cores básicas, que nossos olhos percebem como gradações de cor, desde que elas sejam olhadas suficientemente de longe.

Assim, a modernidade madura dos século XVIII e XIX mudou completamente o objeto de representação, mas, tal como Kant, manteve intangível o ideal de objetividade: objetivo não é o mundo, mas o modo de olhar. Porém, a objetividade do modo de olhar garante a objetividade das imagens. De toda forma, os impressionistas ainda supõem pintar o modo como vemos a luz e, sendo a luz externa a nós, a dualidade sujeito objeto ainda permanece no centro de sua concepção, pois a obra de arte ainda tem uma referência externa a ela mesma. A arte impressionista ainda não é a constituição de objetos, mas a representação de objetos, motivo pelo qual o impressionismo representa a modernidade madura e não a sua superação." Alexandre Araújo Costa

Impressionismo

"A sua concepção de obra de arte defende que o quadro não é uma imagem apenas, mas sim a acção de uma pintura, na qual a imagem se recompõe. O que realmente há de inovador nestes jovens pintores passa pelo método de trabalho, principalmente, uma vez que acabam por renunciar ao tradicionalismo presente nas obras da chamada arte académica. Neste sentido, adoptam uma visão nova da luz, do objecto, das formas, do que retratam nas suas obras. Inicialmente criticados, facto é que muitos consideram o impressionismo o mais importante movimento artístico do século XIX, acabando por influenciar outras correntes, criando as bases para a arte do século XX, isto é, o momento inaugural da arte moderna. É possível fazer algumas comparações com a filosofia positivista, já que, representando o homem moderno no seu quotidiano, estão a aproximar-se da filosofia de Hippolyte Taine, no que toca à sua crença de que a raça, ambiente e localização temporal do homem, são factores importantes para determinar o seu destino. Por outro lado, o interesse dos positivistas na percepção do mundo e sua contribuição para a mesma filosofia também se aproximam do que é retratado pelos impressionistas, já que os positivistas utilizavam termos como “impressão” ou “sensação” para descrever estímulos exteriores recebidos pelos sentidos. Este tipo de comparações literárias, sociais e filosóficas, apesar de gerais, são importantes para compreender o movimento impressionista, enquanto corrente, mas não é possível explicar a sua natureza noutras disciplinas. O ponto de partida da pintura moderna consistiu em destacar o carácter de pintura das obras e ostentar os seus meios para se distinguir da fotografia, o seu grande rival. Os artistas acentuaram a evidência da pintura, o que realmente ela era: uma tela manchada. O espectador já não podia olhar a obra apenas com o ponto de vista e o enquadramento, reduzia-se a profundidade do espaço, eliminando a distância e aplanando os volumes. O quadro perde, finalmente, o carácter de janela que o caracterizava, desde o Renascimento".

Fonte: www.notapositiva.com

17 de março de 2010

Flores do Mal

Fonte:

France Vernier Cidade e modernidade nas "flores
do mal" de baudelaire

A solidão do homem no mundo nunca é tão sensível quanto na cidade;
aliás, existia ela antes do desenvolvimento da civilização urbana? "O Estrangeiro"
(1942), de Albert Camus (1913-1960) é um romance citadino, como "A Náusea"
(1938), de Jean- Paul Sartre (1905-1980), e podemos nos perguntar se o grande
erro dos românticos não foi o de transplantar artificialmente o mal-estar das suas
vidas urbanas – de fato – para a Natureza, onde em conseqüência ele soa falso.
Feridos eles também pelo mistério e pela absurdidade, eles arrastaram sua ferida
mal compreendida pelos vales e refúgios nos quais ela perdia todo sentido. “Mal
do século”, sim, mas, Baudelaire foi o único, antes de Rimbaud (1854-1891), a
sentir que esse século era por excelência aquele da civilização urbana. Ele chegou
mesmo a sentir o aspecto mais dificilmente perceptível, sem dúvida, na sua época,
talvez o mais profundo, a se julgar pelos seus desenvolvimentos. Trata-se do esfacelamento do indivíduo no espaço e no tempo: a cidade é o lugar onde não se escolhem os encontros, onde o passante vem a você bruscamente, suscitando todos
os movimentos da sensibilidade sem que ela tenha tido tempo de se premunir.
(“Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste”, velhinhas, velhos, passante,
mendiga...). Lugar onde as solicitações constantes e indiscretas da publicidade
excitam um após o outro a fome, o desejo ou o sono (“A prostituição brilha nas
ruas”), onde, como se espantará o próprio Apollinaire, “o indivíduo não é senão
uma partícula de seres com corpos enormes”, onde o tempo por si mesmo se
fragmenta e se impõe, insensível à duração interior como à ordem “natural” do dia
e da noite: campainhas, horários de encerramento, transportes... A cidade aparece
como forma concreta e invasiva de uma ameaça desmedida para o homem e
no entanto criada por ele; o lugar onde ele padece e responde, até às vezes perder
consciência de si. “Ferido pelo mistério e pela absurdidade”, eis precisamente
uma dessas “situações do homem” que, escreve todavia Baudelaire no Salão de
1846, “os artistas do passado desdenharam ou não conheceram” e que “é necessário
então conhecer antes de tudo”. Essa última afirmação é extremamente
importante: é a partir dela que se explica a poética de Baudelaire e sua solidão
em seu século; decerto a acuidade tão lúcida dessa angústia já, ainda, moderna
é em si mesma impressionante, mas o que é de ainda maior conseqüência é essa
consciência de que o papel do artista não pode ser o de eludir essa angústia no
refúgio do sonho ou do passado e sim o de “conhecê-la”, de tomá-la por objeto.

Assim, a arte se torna essencialmente um modo de transformação e não mais de
expressão: “feitiçaria evocatória”, obra do “perfeito químico”, essas metáforas
indicam uma relação nova da arte com o mundo, que é ação sobre ele e não
mais seu reflexo ou eco.

(...)
Mas não é só no plano visual que se opera essa transmutação: uma das
dominantes, agora familiar, da sensibilidade moderna é a impressão que o indivíduo
tem de ter sido desapossado do mundo, que uma harmonia imaginária
(vinda de Deus ou da ciência, que importa?) parecia há muito tempo organizar
em torno dele; os objetos tomaram uma monstruosa estranheza – aquela mesma
que o Nouveau Roman tenta tornar sensível; o tempo perdeu sua ilusória continuidade
para se fragmentar em multiplicidades de tempos inconciliáveis e em
instantes fechados sem relação entre si; enfim, a harmonia interior do indivíduo,
aquela que ele acreditou por muito tempo possuir e que lhe dava o domínio de si
e a unidade, é ameaçada precisamente pelas próprias condições da vida urbana
moderna, espécie de violação permanente que ela exerce sobre o indivíduo pela
rápida e absurda sucessão de suas solicitações e de seus constrangimentos.
Essa impressão, Baudelaire a ressente profundamente, e ela é o tema
quase constante, sob suas diversas modalidades, de Flores do Mal.

Assim "As Flores do Mal", sem jamais descrever a cidade, e mesmo
não a designando senão raramente, dela são intimamente penetrados: porque
Baudelaire soube confundir na “tenebrosa e profunda unidade” de uma sensação
o espetáculo da cidade e seu novo e misterioso poder sobre o homem, "As Flores
do Mal" são sem dúvida a coletânea de poemas mais intensamente citadina do
século XIX.

Modernidade em Baudelaire

A POESIA BRASILEIRA DO FIM DO SÉCULO XIX
E DA BELLE ÉPOQUE:
PARNASIANISMO, DECADENTISMO E SIMBOLISMO
Fernando Monteiro de Barros Jr. (UERJ)

"O traço mais distintivo de Baudelaire, porém, passa ao largo
das estéticas do segundo oitocentos, vindo desaguar proficuamente
no Modernismo do século XX. Baudelaire é reconhecidamente o
primeiro poeta a cantar as dores e as delícias da modernidade capitalista e burguesa, em um cenário novo e desconcertante na história da
cultura do Ocidente, o da grande metrópole urbana da era industrial,
com seus cafés, seus bulevares, suas avenidas, mas também com as
figuras marginalizadas pelo discurso otimista do Progresso e da Ciência.
O olhar desencantado do flâneur baudelairiano, aquele que
deambula pela Paris do Segundo Império sem direção definida, é o
que reconhece que “o século XIX é o mundo plasmado das coisas,
das mercadorias, mundo do homem inteiramente reificado, sem expressão
ou comunicação” (Matos, 1993, p. 25), e que “o progresso é
o mito sob o qual o mundo moderno esconde sua real natureza, o inferno
da repetição”

Baudelaire na cidade

Fonte:
Marco Antonio de Menezes

"Dickens, Balzac, Hugo, Dostoievski, Gogol, Zola, para só citar literatos europeus do século XIX, foram alguns dos que, ansiando por desvendar a alma humana, compreenderam que deviam debruçar-se sobre a janela do gabinete onde escreviam e encarar a cidade, estabelecendo um fluxo entre o devaneio pessoal e intransferível e o bulício das ruas.
Não é por menos que Baudelaire sugeria que o verdadeiro artista moderno deveria épouser la foule e que para o observador apaixonado, o flâneur, é grande fortuna escolher sua moradia no numeroso, no ondulante, no movimento, e no fugitivo e infinito. E é, no entanto, o próprio Baudelaire quem funda uma poesia voltada para a cidade e oriunda dela, escrevendo sobre a Paris do Segundo Império, uma cidade grandiosa, planejada, urbanizada, centro da produção intelectual e cultural e pólo irradiador de idéias na época. A face da Paris que revela é caótica e opressora, apresenta claramente aquele caráter dicotômico que aponta para a atração e a repulsa. O olhar da poesia volta-se para o submundo, para a miséria
humana: a mulher é a prostituta; as imagens são carregadas em cores fortes, sombras e detalhes, produzindo estranhamento, choque, horror e, ao mesmo tempo, fascínio.
Transformar em poesia uma cidade: representar seus personagens, evocar figuras humanas e situações; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira protagonista seja a cidade viva, sua continuidade biológica, o mostro - Paris: essa é a tarefa à que Baudelaire se sente chamado no momento em que começa a escrever Les Fleurs du mal."

"Em Baudelaire, a modernidade cheira à morte, à destruição do tempo e a metrópole é o lugar desta morte. É em As Flores do Mal que a cidade grande e a multidão, sem serem um tema explícito, desenham a modernidade. Em todo Quadros Parisienses a cidade é mostrada em sua fragilidade: a cidade moderna como ruína antiga."

"Em Baudelaire o sujeito toma consciência de si mesmo. Ele é o fundador da consciência do sujeito na cultura contemporânea. É o gosto da recusa, da resistência, que cria o sujeito. Na modernidade este sujeito toma consciência de si no movimento de passagem da vida pacata na pequena Vila para a grande Cidade. Na modernidade este sujeito não é mais o sujeito clássico do Iluminismo com sua razão salvadora é antes o homem nu na multidão de iguais."

Escritos íntimos, de Baudelaire

“Perdido neste mundo adverso, incomodado pela multitude, pareço-me com um homem desiludido cujo olhar, quando se volta para trás e procura fixar-se nos anos revolutos, não se apercebe de mais do que desilusão e amargura, e que se olha em frente não consegue distinguir nada de novo, nem ensinamentos nem dor.”

As Flores do Mal

FONTE
MARCOS ANTONIO DE MENEZES
Um Flâneur Perdido na Metrópole do Século XIX:
História e Literatura em Baudelaire

"As Flores do Mal são um livro que celebra a melancolia, a desesperança sombria de uma época que viu o chão se rachar e surgir novas e desconhecidas flores, que exalavam odores nunca antes experimentados. É uma época marcada pela destruição das certezas do Iluminismo e da revolução; tudo o que era sólido se desmanchava no ar e tudo que foi colocado no lugar foi a fria relação com dinheiro. Agora, os homens eram obrigados a encarar os iguais sem intermediários. Não havia mais estamentos, classes ou ordens; mas sim a relação monetária, a estabelecer novas bases para tudo."

Spleen, de Baudelaire

Spleen

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;
Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
As asas tímidas nos muros vai batendo,
E a cabeça roçando o teto apodrecido:
Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,
Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lança contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.
– Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.

Baudelaire e o progresso

"Não era preciso se empenhar em nenhuma luta incerta, não era preciso tomar nenhuma iniciativa incômoda: tudo estava assegurado por um “progresso” que estava fazendo avançar a humanidade como um todo, de maneira mais ou menos homogênea, na direção de uma infinita perfectibilidade (se a heterogeneidade se manifestava, se um país se atrasava, se uma classe sofria, tais tropeços logo seriam absorvidos pela tendência global). A humanidade era vista caminhando, no ritmo possível, no interior de um tempo vazio, artificialmente uniformizado." (Baudelaire)

Baudelaire, segundo Paul Verlaine

"A profunda originalidade de Charles Baudelaire está, a meu ver, no fato de representar poderosa e essencialmente o homem moderno; e com esta expressão, o homem moderno, não queria, por uma causa que explicarei daqui a pouco, designar o homem moral, político e social. Refiro-me aqui apenas ao homem físico moderno, tal como fizeram os refinamentos de uma civilização excessiva, o homem moderno, com seus sentidos aguçados e vibrantes seu espírito dolorosamente sutil, seu cérebro saturado pelo fumo, o sangue queimando pelo álcool, numa palavra, o bilioso por excelência, como diria H. Taine.

Baudelaire, o primeiro maldito.

Fonte:MARCOS ANTONIO DE MENEZES
Um Flâneur Perdido na Metrópole do Século XIX:
História e Literatura em Baudelaire

"Baudelaire é o primeiro moderno, o primeiro a aceitar a posição desclassificada, desestabelecida do poeta – que não é mais o celebrador da cultura a que pertence; é o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do novo espaço urbano.
Baudelaire identificou-se com todos os marginais da sociedade: as prostitutas, os bêbados etc. Não é comum para um rebelde de sua classe igualar-se à parte “suja” da sociedade."

A velha e saudosa Paris, antes de Haussmann

Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);
O cisne, v. 5–8. (Fleurs du mal)

Baudelaire e o tempo da modernidade, segundo Foucault

Fonte:
MURICY, Katia. O heroísmo presente. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 31-44, outubro de 1995.

"Em resumo, através do texto de Kant, Foucault apresenta a sua concepção
da modernidade não como período histórico mas como atitude. Por
atitude ele entende um modo de relação com respeito à atualidade; uma determinada
escolha voluntária feita por indivíduos; uma maneira de pensar, sentir,
agir e conduzir-se que demarca o pertencer a uma época e que é proposta
como uma “tarefa”. Para caracterizar esta atitude moderna, Foucault toma o
exemplo “quase necessário” de Baudelaire, “reconhecidamente uma das
consciências mais agudas da modernidade no século XIX”. Baudelaire, que
afirmava “vous n’avez pas le droit de mépriser le présent”, via a modernidade
como uma forma de relação com o presente e como uma forma de relação
consigo mesmo, no espaço da arte.
A modernidade de Baudelaire, para Foucault, refere-se primeiramente
a uma atitude em relação à percepção do tempo. A característica atribuída
habitualmente à modernidade - a consciência da descontinuidade do tempo
relacionada à ruptura com a tradição, a erupção da novidade e a experiência
da fugacidade dos acontecimentos - não basta para se compreender a
modernidade de Baudelaire. Se o poeta define a modernidade como “o transitório,
o fugidio, o contingente”, a atitude moderna que Foucault encontra em
Baudelaire é aquela que o leva a não simplesmente constatar e se contentar
com esta apreensão da descontinuidade do tempo. É, ao contrário, uma tomada
de posição que, de certo modo, se opõe à transitoriedade. Consiste em
procurar, por uma decisão da vontade, construir uma eternidade muito particular.
Este conceito de eterno não busca eleger uma atemporalidade, projetada
no passado ou no futuro, mas em circunscrever-se no instante presente.
A modernidade de Baudelaire seria a de não aceitar o curso do tempo
e por uma atitude voluntária, construí-lo, submetendo-o a este ato de vontade.
É por esta decisão da vontade que Baudelaire irá encontrar o heróico. A
modernidade de Baudelaire não seria apenas uma sensibilidade ao presente
transitório, fugidio, mas uma decisão, uma atitude firme de heroificar o
presente."

"Foucault observa que a heroificação é irônica. Não se trata de uma
sacralização do presente, do instante, para perpetuá-lo. Mas também não se
trata, sobretudo, de arquivá-lo como curiosidade fugidia. Esta segunda atitude
seria própria do flâneur que tem algo de veleidade na atitude de colecionador
de lembranças que lhe permite fugir da atualidade, das circunstâncias.
Nem sacralizar o instante, nem apanhá-lo como curiosidade A atitude do moderno
é a busca da modernidade entendida por Baudelaire como “dégager de
la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique”."

"Foucault cita a conhecida crítica de Baudelaire aos pintores seus
contemporâneos que representavam os personagens do século XIX vestidos
com togas da Antiguidade por acharem as roupas modernas indignas de serem
representadas. Mas Baudelaire não acha que basta substituir togas pelos ternos
pretos. O pintor moderno deve, além de pintar os personagens com ternos
pretos, mostrar esses trajes como “a vestimenta necessária da nossa época”
e isto porque o preto das roupas revelaria em uma alegoria, o essencial luto, a
relação obsessiva da nossa época com a morte.Constantin Guys não é, embora
aparente, um flâneur. Ele é o que trabalha arduamente quando todos dormem,
à noite - este tempo subtraído do fluxo produtivo capitalista - transfigurando
o mundo, o real. Um duelo que não pretende anular este real mas estabelecer
um jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade. Para
Baudelaire, as coisas naturais tornam-se nos desenhos de Constantin Guys
“mais que naturais”, as coisas belas “mais que belas”."

"Baudelaire concebia a modernidade como algo mais do que uma
relação específica com o presente. Concebia-a também como uma forma de
relação que se deve construir consigo mesmo. Esta forma moderna de relacionar-
se consigo mesmo é o ascetismo. O eu moderno é, em conseqüência mesmo
da atitude de construção do tempo, também objeto de uma construção. Há
em Baudelaire uma recusa em aceitar o eu por assim dizer natural que existe
no fluxo dos momentos. Este esforço árduo de construção de si Baudelaire
chama de dandismo. O ascetismo do dândi, “de seu corpo, de seu comportamento,
de seus sentimentos e paixões, faz de sua existência uma obra de
arte”. Foucault escreve, aludindo mais uma vez ao seu próprio projeto filosófico,
“o homem moderno, para Baudelaire, não é o que parte para a descoberta
de si mesmo, de seus segredos e de sua verdade escondida; é o que
procura inventar-se a si próprio. Esta modernidade não “libera o ser próprio
do homem”; ela o obriga à tarefa de se elaborar a si próprio”
(Foucault, 1984a, p. 42). Foucault termina suas poucas páginas sobre
Baudelaire observando que a heroificação do presente, o jogo da liberdade
com o real, a elaboração ascética de si não tem lugar na sociedade ou na política,
mas a atitude moderna só pode ser vivida “no que Baudelaire chama arte”."

16 de março de 2010

Baudelaire e o grotesco

FONTE
O GROTESCO EM BAUDELAIRE
Valerio Medeiros (mestrando em Teoria Literária)


"Será no Romantismo, entretanto, que o conceito de grotesco na literatura configurar-se-á de forma mais bem acabada. Victor Hugo desenvolve uma teoria do grotesco que iluminará os estudos do vocábulo a partir de então. Sabemos que o Romantismo instaura a modernidade nas artes, e, nessa esteira, Hugo aponta a presença inequívoca do grotesco:
“No pensamento dos Modernos, o grotesco tem um papel imenso. Aí está por toda a parte; de um lado cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo. Põe em redor da religião mil superstições originais, ao redor da poesia, mil imaginações pitorescas. É ele que semeia, a mancheias, no ar, na água, na terra, no fogo, estas miríades de seres intermediários que encontramos bem vivos nas tradições populares da Idade Média; é ele que faz girar na sombra a ronda pavorosa do sabá, ele ainda que dá a Satã os cornos, os pés de bode, as asas de morcego.”
Baudelaire, grande ícone da modernidade, enriquece sua poesia de “mil imaginações pitorescas”, e terá em Satã uma devoção religiosa. Não é por outro motivo que Proust aponta que no poeta de As Flores do Mal “o cuidado de ensinar a mais profunda teologia está confiado a Satã”.
Lembremos, aqui, o poema “As Litanias de Satã”4:
Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor,
Deus que a sorte traiu e privou de louvor,

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

Satã reunirá, para Baudelaire, o estranhamento primevo que as pinturas grotescas causaram ao homem quinhentista: o híbrido do humano com o animalesco. Vale lembrar que Satã, além de “disforme” e “horrível” na forma física, tem, como traços marcantes em sua personalidade “o cômico e o bufo”, chegando mesmo a escarnecer das desgraças. Com relação a este último aspecto, ressaltamos que o gênero tragicômico é uma legítima manifestação grotesca – no teatro e no romance –, dada a união híbrida e conflitante da tragédia com a comédia, do sublime com o grotesco.



Do grotesco e do sublime

Para Hugo, o contraste entre o sublime e o grotesco é o que dá à literatura o seu élan:
“(...) como objetivo junto do sublime, como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte.”5
Ao que se acrescenta:
“O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada.”6
Não será por outro motivo que, para Baudelaire, Satã é “o tipo mais perfeito de Beleza viril”.7 Tal declaração nos mostra que o poeta filiava-se à teoria do autor de Os Miseráveis.
A obra de Baudelaire está repleta de elementos do grotesco, não fosse ele um dos principais representantes do Romantismo, ainda que crepuscular. Para ele, “a mistura do grotesco e do trágico é agradável ao espírito, como as discordâncias aos ouvidos enervados”.8
Folheando As Flores do Mal, encontramos diversos exemplos dessa mistura. Em “O Esqueleto Lavrador”, lemos ecos do horror típico de Edgar Allan Poe, que também lançou mão do grotesco em sua obra:
Vê-se, o que torna mais completos
Estes misteriosos Horrores,
Cavando como lavradores
A multidão de esqueletos.
Notamos que, em Baudelaire, o grotesco se manifesta de maneira mais contundente quando ligado ao tema da morte ou estados mórbidos. Se não, vejamos uma estrofe de “A Uma Mendiga Ruiva”:
A mim, poeta sofredor,
Teu corpo de um mal sem cura,

Todo manchas de rubor,
Só tem doçura.
Sabemos que a morte é um dos principais assuntos da obra baudelairiana, reservando, n’As Flores do Mal, uma sessão de poemas sob o título “A Morte”. O Romantismo, com sua sensibilidade à flor da pele, tenderá a enxergar a vida sob o estigma da finitude. Ante à única certeza do homem – a de que vai morrer –, o poeta romântico, ávido de Beleza, incorporará à sua estética – que, vale lembrar, pregava a união permanente de vida e arte – a apreciação da morte, extraindo, também dela, o Belo. Por este motivo, Paul Valéry chamou a atenção para o fato de que “os românticos reagiram mais contra o século XVIII que contra o XVII”9, donde se percebe que o Barroco, com sua obsessão pela morte e a finitude da vida, ainda exercia sobre o homem do século XIX grande influência.
O Barroco lega ao Romantismo o interesse pelo ornamento plástico e lingüístico. As artes plásticas barrocas, repletas de motivos grotescos, ecoam nestas sentenças de Baudelaire:
“O desenho arabesco é o mais espiritualista dos desenhos.”
“O desenho arabesco é o mais ideal de todos.”10
Erich Auerbach observou que Baudelaire incorporou o aspecto grotesco da realidade à linguagem sublimada do Romantismo. Daí, encontrarmos n’As Flores do Mal uma linguagem extremamente poética, numa incessante busca do Belo, onde o grotesco assume um papel importante no efeito do contraste com o sublime.

O grotesco na modernidade de Baudelaire

Dissemos, anteriormente, que o grotesco sempre existiu nas Artes, ainda que de modo inconsciente. É de se notar, no entanto, que o grotesco, a partir do Romantismo, assume uma intencionalidade marcante. Sua aplicação na poesia está estreitamente ligada a uma nova visão e maneira artística, a que chamamos Modernidade. O moderno, com seus conceitos de ruína e fragmento, detectará também o aspecto disforme que se configura nesse novo espírito de época. Baudelaire, flâneur da Paris modernizada, é o observador das diversidades humanas que tomam as ruas da Cidade-Luz, onde o mendigo passa a dividir o mesmo espaço urbano que a senhora burguesa sofisticada.
Nessa nova ordem social, o olhar aguçado e crítico do poeta detecta algo além do que o simples prazer voyeurista do flâneur, pois “os seres perdem o seu aspecto familiar, há uma completa subversão da ordem ontológica. A desproporção no miúdo sugere uma desarmonia universal”.11
Aqui, vale lembrar Wolfgang Kayser:
“Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antigüidade, havia para a Renascença não apenas algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente, algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas (...).”12
Como vemos, a identificação do grotesco no mundo moderno configura, em Baudelaire, uma chave importante para certos poemas seus. Em “O Vinho dos Trapeiros”, notamos a cidade e seus moribundos sob o crivo desse olhar:
Estes, que a vida em casa enche de desenganos,
Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,
Derreados sob montões de detritos hostis,
Confuso material que vomita Paris.
O conceito de grotesco, na modernidade, acentua bastante esse sentimento de “desarmonia universal”, essa suspensão das ordenações da realidade. O monstruoso, o disforme, para Baudelaire, é, sobretudo, a massa urbana em movimento nas ruas, provocando no poeta um misto de Beleza e feiúra, de encanto e náusea. Sabemos do fascínio de Baudelaire pela vida moderna e conhecemos, também, seu desprezo por ela.
Baudelaire comumente trará, para o seu universo poético, esse encontro do Belo com o grotesco, o que constituirá um elemento fundamental de sua obra. Victor Hugo reflete sobre essa relação do sublime com o grotesco apontando aspectos que se reconhecem sobremaneira na poética baudelairiana:
“(...) na nova poesia, enquanto o sublime representará a alma tal qual ela é, purificada pela moral cristã, ele [o grotesco] representará o papel da besta humana. O primeiro tipo, livre de toda mescla impura, terá como apanágio todos os encantos, todas as raças, todas as belezas (...). O segundo tomará todos os ridículos, todas as enfermidades, todas as feiúras. Nesta partilha da humanidade e da criação, é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes; é ele que será luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita.”13
Impossível citarmos estas considerações de Hugo sem que este último adjetivo não nos remeta a Baudelaire, de maneira mais evocativa que todos os outros listados. O “leitor hipócrita”, formulado por Baudelaire, faz parte dessa nova poesia, em que o grotesco tem papel relevante. Leitor hipócrita e cúmplice, já que também é semelhante a esse poeta que canta o feio:
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!14
Mas talvez o poema de As Flores do Mal que melhor representa o encontro do grotesco com o sublime seja “Uma Carniça”:
Recorda-te do objeto que vimos, ó Graça,
Por belo estio matinal,
Na curva do caminho uma infame carcaça
Num leito que era um carrascal!

Suas pernas para o ar, tal mulher luxuriosa,
Suando venenos e clarões,
Abriam de feição cínica e preguiçosa
O ventre todo exalações.

Resplandecia o sol sobre esta cousa impura
Por ver se a cozia bem
E ao cêntuplo volvia à grandiosa natura
O que ela em si sempre contém;

E o céu olhava do alto a carniça que assombra
Como uma flor desabrochar.
A fedentina era tão forte e sobre a alfombra
Creste que fosses desmaiar.

Moscas vinham zumbir sobre este ventre pútrido
Donde saíam batalhões
Negros de larvas a escorrer – espesso líquido
Ao largo dos vivos rasgões.

E tudo isto descia e subia, qual vaga,
Ou se atirava, cintilando;
E dir-se-ia que o corpo, inflado de aura vaga,
Vivia se multiplicando.

E este universo dava a mais estranha música,
Água a correr, brisa ligeira,
Ou grão que o joeirador com movimento rítmico
Vai agitando em sua joeira.

Apagava-se a forma e era coisa sonhada,
Um esboço lento a chegar,
E que o artista completa na tela olvidada
Somente por se recordar.

Uma cadela atrás do rochedo tão preto
Nos olhava de olhar irado
Para logo depois apanhar do esqueleto
O naco que havia deixado.

- E no entanto serás igual a esta torpeza,
Igual a esta hórrida infecção,
Tu, sol de meu olhar e minha natureza,
Tu, meu anjo e minha paixão.

Isso mesmo serás, rainha das graciosas,
Aos derradeiros sacramentos
Quando fores sob a erva e as florações carnosas
Mofar só entre os ossamentos.

Minha beleza, então dirás à bicharia,
Que há de roer-te o coração,
Que eu a forma guardei e a essência de harmonia
Do amor em decomposição.
Neste poema, que nos lembra o nosso Augusto dos Anjos, ávido leitor de Baudelaire, lemos o tema da morte abordado de maneira extremamente mórbida, com expressivo acento de imagens grotescas. No início, entramos em contato com dois extremos: a feiúra do cadáver em decomposição e a beleza da amada, para, ao final, vir a conclusão de que a bela mulher um dia será igual à carniça. Por essa aproximação pouco afeita a uma poesia lírica, notamos um estranhamento, algo incômodo, que nos joga sem meias palavras na constatação inequívoca da finitude da vida – e da Beleza. Para Baudelaire, “o que há de fascinante no mau gosto é o prazer aristocrático de desagradar”.15 Afora tal declaração vir carregada de provocação – e, sem dúvida, Baudelaire era um provocador –, ela também denuncia uma consciência do recurso do grotesco na arte moderna. Ora, sabemos que a arte moderna não se preocupa em agradar, à maneira do estilo clássico, mas em revelar a complexidade desse admirável mundo novo.
É interessante a maneira como, neste poema, se revela uma certa misoginia, algo presente na obra baudelairiana:
Suas pernas para o ar, tal mulher luxuriosa,
Suando venenos e clarões,
Abriam de feição cínica e preguiçosa
O ventre todo exalações.
Pela grotesca, caricata, comparação da carniça com a mulher luxuriosa, podemos dizer que o cadáver em decomposição assume “feição cínica e preguiçosa” porque o cinismo e a preguiça são dois atributos típicos das mulheres, na visão do poeta.
Falamos em caricatura. Ressaltamos que a caricatura é uma das mais utilizadas formas de expressão do grotesco, algo que se acentua, sobretudo, no século XIX, devido a sua profícua publicação em jornais. Proust chega mesmo a dizer que As Flores da Mal são um “livro sublime mas caricato, onde a piedade faz escárnio, onde o deboche faz o sinal da cruz”. 16 “Uma carniça” não é um poema desprovido de humor negro, acreditamos, assim como “Dança Macabra”, em que um esqueleto feminino se prepara para ir a uma festa, também não o é.
O contínuo contraste entre o sublime e o grotesco se dá ao longo do poema, donde podemos extrair algumas passagens que mais nos chamam a atenção. Notamos que a terrível visão se dá num “belo estio matinal” e que “resplandecia o sol sobre esta cousa impura”. Ou ainda que a carniça desabrochava como uma flor. Pode-se ouvir uma música que é estranha, mas não deixa de ser música.
As três últimas estrofes se concentram na constatação – e por que não dizer ensinamento, já que o eu lírico se dirige à amada – de que também a beleza humana, feminina, será corrompida pela lei implacável da Natureza:

- E no entanto serás igual a esta torpeza,
Igual a esta hórrida infecção
A morbidez, companheira inseparável do grotesco, ganha, em Baudelaire, status lírico. Como bom romântico, ainda que ultrapassasse o rótulo, Baudelaire cultivou e cultuou a morte. Dona de um leque extenso de metáforas, a Morte, aqui, também pode ser vista como o óbito de um tempo que não cabe mais na poesia. O autor de As Flores do Mal propunha uma nova maneira de se ver o mundo e um novo conceito de arte em tempos de Modernidade, que trazia o progresso e o tédio, e que tanto faria ainda sentido para os decadentistas do fim do século XIX. Essa nova poesia destituía o poeta de uma suposta condição de ser privilegiado e divino, portador da auréola, jogando-o no calor das ruas e das multidões:
“Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo!”.

Sobre Flores do Mal

Ver artigo em http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/baudelaire.html

15 de março de 2010

Charles Baudelaire




Biografia (by Wikipedia)
Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de Abril de 1821 — Paris, 31 de Agosto de 1867) foi um poeta e teórico da arte francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.

Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Colégio Louis-Le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).

Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.

Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O livro é acusado no mesmo ano, pelo poder público, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são presos, o escritor paga 300 francos e a editora 100, de multa.

Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreveu seis novos poemas "mais belos que os suprimidos", segundo ele.

Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.

Morre em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.

Introdução a Flores do Mal

As Flores do Mal
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Ir para: navegação, pesquisa

Primeira edição de Les fleurs du mal com anotações do autor
Spleen et Idéal, 1907, por Carlos Schwabe. As Flores do Mal (título original em francês: Les fleurs du mal) é um livro escrito pelo poeta francês Charles Baudelaire, consideradas o marco da poesia moderna e simbolista. As Flores do Mal reúnem de modo exemplar uma série de motivos da obra do poeta: a queda; a expulsão do paraíso; o amor; o erotismo; a decadência; a morte; o tempo; o exílio e o tédio. Pelas palavras de Paul Valéry: «As Flores do Mal não contêm poemas nem lendas nem nada que tenha que ver com uma forma narrativa. Não há nelas nenhum discurso filosófico. A política está ausente por completo. As descrições, escassas, são sempre densas de significado. Mas no livro tudo é fascinação, música, sensualidade abstracta e poderosa.» «Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio.», escreveu Baudelaire sobre este livro numa carta.

Em 1857, no dia 25 de Junho, são publicadas As Flores do Mal. O livro foi logo violentamente atacado por Le Figaro e recolhido poucos dias depois sob acusação de obscenidade. Baudelaire foi condenado a uma multa de 300 francos (reduzidos depois para 50) e o editor a uma multa de 100 francos e, mais grave, seis poemas tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Em 1860 sai a segunda edição de As Flores do Mal. Foi organizada em cinco secções segregadas tematicamente:

Spleen et Idéal (Tédio e Ideal)
Fleurs du Mal (Flores do Mal)
Révolte (Revolta)
Le Vin (Vinho)
La Mort (Morte)

Herói romântico

O melhor exemplo é Lord Byron, com a incompatibilidade entre as reivindicações morais do individuo e as convenções da sociedade. O herói está fadada a ser
um vagabundo eterno, sem pátria, em revolta aberta como o seu tempo.
Esta angústia, a verdadeira doença do século, produz inquietação/ desorientação/ sentimento de isolamento/ culto ressentido da solidão/ a perda de fé nos antigos ideais/ individualismo anárquico/ namoro com a morte. O herói romantico ama ser um maldito, é masoquista, faz alarde de suas feridas, flageladores de si proprios.
Em relação à humanidade, é um misantropo, solitário, anjo caído, feição demoníaca e narcisista. Por vezes, apresenta-se como um homem misterioso, cujo passado é um segredo (um pecado terrível, um erro desastroso ou a falta irreparável). É rude e indomável. Herói demoníaco que tende a si e aos outros à destruição.

Ethos romântico

O ethos romântico é marcado pelo desespero e desilusão, por uma melancolia indefinível. A vida perde todo seu significado; não há nada que merece ser ardentemente desejado. Única ação sensata é o suícidio. O universo do herói romântico é cindido pela distinção absoluta entre o mundo exterior e o mundo interior. O resultado é a misantropia, existência irreal, abstrata, egoísmo. Ele é anti-burguês.
O romântico vai se caracterizar pela renúncia à vida ativa, renunciando ao mundo, ao público, que ele considera vulgar e incapaz de entender a sua obra. A boêmia burguesa será uma tentativa de se distinguirem do burguês, como o dândi, pelo uso de roupas, chapéus, barbas, colete vermelho, indumentária vistosa e brilhante. Quanto ao burguês, ele o odeia. Detesta a sua vida regulada e disciplinada, tudo o que lhe é tradicional, aprendido, convencional, amadurecido e sereno.
A figura do jovem encarnará o movimento, em oposição extremada à serenidade da maturidade. Pela primeira vez, o jovem é considerado o representante natural do progresso.
O protesto contra os valores burgueses, seus gostos e suas preferências estéticas, leva a afirmação da arte pela arte, a arte como um supremo jogo e de a gozar como um secreto paraíso defeso aos simples mortais. Arte renuncia a toda atividade política e social, recusa-se a mudar o mundo. A arte tem o objetivo de uma capitulacao passiva perante a vida.

Experiência do mundo vs. experiência do eu

O romantismo substitui a experiência do mundo pela experiência do seu próprio eu, de modo a sentir que a atividade espiritual, o fluxo de pensamentos e de sentimentos, o caminho que levava de um estado espiritual a outro tinham mais realidade do que a realidade exterior. O mundo é o substrato, a matéria prima das experiências do eu, oferecendo um pretexto para falar de si próprio. Nesta perspectiva, o mundo e a realidade oferecem uma oportunidade para o movimento espiritual. E a arte não passa do vaso acidental em que o conteúdo da experiência fica definido passageiramente.

Doença romântica

Para o romântico, o doente é apenas uma fuga do domínio racional dos problemas da vida, e sofrer deste estado doentio, apenas um pretexto para se afastar dos deveres da rotina cotidiana. Para eles, o doentio representava a negação do vulgar, do normal, do razoável, e continha o dualismo do viver e do morrer, do natural e do não-natural, da subsistência e da dissolução, que dominava todo o seu conceito de vida.

Segundo eu romântico

O romântico é animado por um impulso irresistivel para a introspecção. Tem uma tendência para auto-observação, compulsão que leva cada um a considerar-se um desconhecido, um estranho irrealmente remoto. A idéia do segundo eu é uma tentativa de fuga e traduz a incapacidade dos romanticos de se reginarem a sua situação historica e social próprias. O romântico mergulha no seu duplo como um refúgio contra a realidade, que é incapaz de dominar por meios racionais.

O segundo eu, lugar do inconsciente e fonte dos sonhos, liga-se diretamente a descoberta dos fatos principais da psicanálise. Para os romanticos, o irracional tem a vantagem inestimável de se subtrair ao controle consciente, razão por que preza os instintos inconscientes e obscuros, os estados de alma irreais e extaticos, e procura neles a satisfação que o intelecto frio e crítico não consente. Daí a confiança nos estados de espíritos, no entregar-se ao momento e à impressão fugaz. Culto do misterioso e do tenebroso, do fantástico e do grotesco, do horrível e do fantasmagórico, do diabólico e do macabro, do patológico e do perverso: porque quanto mais confuso é o caos, tanto mais radiante a estrela que se espera que dele surja.

Arte romântica

Arte romantica procurará excitar e provocar sentimentos e ilusões no espectador, despertanto reações de lágrimas e transporte de encantamentos. Não é reflexiva, mas essencialmente afetiva, dotada de uma sensibilidade exaltada, impressionabilidade do coração e da alma.

Fuga romântica

O sentimento romântico é o de solidão e ausência de pátria. Estes novos exilados estavam ansiosos em busca de uma pátria. Buscavam vagabundear sem objetivo e sem fim, no encalço da “flor azul” que ninguém alcanca e que será sempre inatingível, na solidão que se busca e se evita. A aspiração intensa da pátria e do longíquo convive lado a lado com o sentimento de falta do que lhes esta próximo, sofrem com o seu isolamento dos homens, mas, ao mesmo tempo, evitam-nos e buscam o remoto, o exótico e o desconhecido. Sofrem com seu alheamento do mundo, mas o aceitam e o desejam.
O romântico é sempre um trânsfuga.

Todos somos terrivelmente herdeiros do Romantismo!

A sensibilidade romantica criou uma nova consciência de se estar no mundo. Na verdade, mais que isso, é uma nova consciência de si mesmo - e que hoje faz parte do homem moderno ou pós-modernos. Não há como negar a nossa herança romântica. A arte moderna é visceralmente romântica.

O início do fim: a morte do assunto.



ARTIST Eugène Delacroix (Eugene Delacroix)
PAINTING The Death of Sardanapalus

O verdadeiro tema da obra de arte é a maneira propriamente artistica de apreender o mundo, ou seja, o próprio artista, sua maneira e seu estilo, marcas infalíveis do domínio que exerce sobre sua arte.

Herói romântico vs. sociedade

Na estética clássica, o tema do desajustamento do indivíduo foi tratado por Molière. Para ele, o que importava era o ajustamento à sociedade, e nos termos em que deveria ocorrer. O meio e o critério básico são o bom senso, o equilibrio das paixões e propensões que desregram a conduta social das personagens, colocando-as em situação cômica pela inadequação aos marcos comuns da normalidade. Por isso os conselheiros de Molière procuram essencialmente reconduzi-las a atitudes socialmente razoaveis, admissíveis, segundo as normas então vigentes. À luz de Bergson, poder-se-ia dizer que se empenham em flexibilizar-lhes os enrijecimentos de carater, os automatismos e cacoetes anti ou a-sociais que as revestem de caricata excentricidade aos olhos dos sensatos, isto e, dos que se comportam com juizo e regra da sociedade. O desajustado é, pois, uma figura cômica no teatro de Moliere. É o individuo reto demais para poder conviver com as fraquezas e as vaidades humanas que, no entanto, fazem parte da realidade dos homens e, por isso, do jogo social, devendo ser, senão perdoados, acolhidos e tolerados com medida, a nao ser que se queira incorrer em misantropia e cometer o pecado do anti-social como parece insinuar o conselho amigo.
No romantismo, ocorre o oposto: o desajustado é uma figura trágica e não cômica. Os verdadeiros valores estão do seu lado. O ajustado deve ser desajustado: ele é que tem razão e não a sociedade. É a afirmação do eu em face de seu contexto/insatisfação com a sociedade.
Um dos temas recorrentes é a crítica à estatização, burocratização, engrenagem social e alienação do individuo. Sentindo-se à margem da sociedade, como alguém dissociado dela por seu caráter superior mas não reconhecido, o herói sofre com a situação, experimenta a dor do mundo.
A dor do mundo é o sentimento de desterro do homem romantico em sua relacao com o contexto onde lhe é dado viver. Incapaz de superar esta cisão por uma decisão, ve-se permanentemente cindido, o que determina uma passividade no agir - típica do romantismo - e esta mesma divisão o coloca numa relação irônica em face de si mesmo e crítica em face do mundo.

Individualismo da Ilustração e do Romantismo

Na Ilustração, o individualismo se baseia na faculdade racional comum a todos os seres humanos e que os torna iguais. Se nem todos os homem tem o mesmo nivel, não é por serem uns mais ou outros menos dotados desta capacidade, mas por causa da educação e dos entraves sociais. Abolidos tais impedimentos, todos os homens deverão aproximar-se da plena racionalidade. As potências racionais tornam-se ato.
O Romantismo, ao contrário, propõe a valorização daquilo que distingue o individuo dos outros. E o que o distingue é a situação social, sua sensibilidade especifica desenvolvida num certo ambito nacional. O valor do indivíduo recai no peculiar, naquilo que diferencia uma pessoa de outra, uma nação de outra, ou seja, a individualidade. Na história, os românticos vão procurar as dessemelhanças entre os povos.
O interese do indivíduo dentro do habitat sócio-histórico relaciona-se diretament com o tema da configuração do homem dentro de um ambiente, o processo de estabelecimento de uma cor local.

Estética romântica

A palavra de ordem é: " é preciso liberar a emoção". Em vez da serenidade, objetividade, ponderação, disciplina, temos a efusão violenta de efeitos e paixões, as dissonâncias, a desarmonia em vez de harmonia. Tudo leva a um subjetivismo radical: impeto irracional, selvagem, patologico. Daí a enfase no noturno e nas trevas: mórbido, doentio, demoníaco.
De modo geral, o olhar romântico busca a singularidade e a totalidade, isto é, ver cada singularidade em seu contexto geral, cada ser humano na paisagem social que o enforma e emoldura. Enquanto o classicismo retira o individuo do contexto para focalizá-lo, o romantismo ilumina-o dentro de seu quadro global. Cada arte tem a ver com o seu tempo histórico específico.
Se a arte clássica, buscou um ideal harmônico, o romântico perseguirá a contradição entre o individuo (gênio) e sociedade.
O gênio romântico é faustico e prometeico, porque não se pode ajustar a quaisquer limitações e estruturas sociais. Ele escapa delas, fugindo e renunciando à sociedade. Por essa razão, o herói romântico é oposto ao burgues e ao cortesão/ livre, vigoroso (espécie de Robin Hood), encarnação da liberdade.
A insatisfação com a sociedade redunda no tema da alienação humana, da figura do ser humano convertido em peça da roda gigante da civilização, e que por isso não pode desenvolver sua personalidade total. Ele é apenas uma função mecanica, pervertido em sua essencia por nossa civilização. Homem visto pelo romantismo é um ser cindido, fragmentado, dissociado. Infeliz, desajustado, que não consegue se enquadrar no contexto social.
O sentimento de inadaptação social causará aflição e dor (mal du siècle), e a busca da evasão da realidade. Os países exoticos e epocas remotas prometerão o oásis da completude entre o indivíduo e a sociedade, nas quais os romanticos acreditam encontrar a cultura integrada e a sociedade unificada com que sonham. A Idade Média, por exemplo, aparece sem fissuras, de inteireza total. Nas terras selvagens, os românticos descobrem um mundo primitivo e puro. O misticismo proporcionará a comunhão cósmica, isto é, o unir-se e fundir-se misticamente com o universo em sua infinitude. Tudo isso levará ao sentimento do paraíso perdido irremediavelmente.

A liberdade defendida pelo romantico é para desfazer as formas das coisas, porque ele não se atém a regras ou imposições. Na verdade, ele despreza a verossimilhança: se quiser pode pintar de maneira abstrata, nada o força a imitar o espaço tridimensional, que é um espaço ilusório. O artista pode abandonar tais elementos e manipular seu material com o objetivo de desmistificar e de ultrapassar a visão superficial de uma realidade aparente. Artista pode criar anões, elfos, gigantes, ninfas, ondinas, duendes. O mundo do espiritual e subjetivo o leva à contestação das regras da lógica, do domínio do racional, da coerência.

Filosofia romântica

Tudo gira em torno do espírito e do poder de criação do artista. Tudo provém da espiritualidade, através da imaginação produtora. O real é o espírito e aquilo que se nos apresenta nada mais é senão aparencia plasmada pelas categorias de nossa mente. Por trás deste quadro corriqueiro e epidermico, há um mundo espiritual profundo, que podemos captar em estados que não sejam os da vigília. Na infancia, quando nao estamos ainda condicionados pelos habitos do dia-a-dia a pensar segundo os estereotipos da vida burguesa, é mais fácil e imediato o contato com a espiritualidade fundamental. Inocentes, podemos ver a realidade como ela é , em sua pureza, sem as deformações de uma ótica filistéia.
Daí a exaltação romantica dos estados em que a imaginação, o nosso eu profundo, a força espiritual, se desencadeia para penetrar no amago da realidade. Para os romanticos, é no inconsciente que se encontra o nosso ser mais profundo, ou seja, este lado noturno que nos habita e faz parte organica de nossa psique. O inconsciente é como que uma floresta selvagem em nosso íntimo, do qual a consciencia é o cromo - arranhando-o um pouco, chega-se ao cerne primitivo. Este arranhão - feito no sonho ou na loucura - leva-nos ao contato com a nossa espiritualidade, a partir da qual se tem uma visão mais intima e mais essencial da realidade. Nesta região profunda do nosso ser, somos ainda unos, formamos uma unidade completa, e nao existe aí dissociações e fragmentações.
Anunciando a psicanálise, no romantismo, aparece a figura do homem-joguete, o individuo cujo inconsciente, uma força misteriosa em seu íntimo, se projeta para fora como espectro, que o assombra e o converte em seu joguete. O homem é o títere de forças insondáveis.
Na visão romantica, a alienação tem a ver com a condição de um ser que se desdobra em outro, que é ele mesmo mas que não consegue reconhecer-se em si próprio e que se lhe antepõe como um ser objetivo em face do eu.
O mítico, onírico, fantástico, tidos como expressão sensível de pura espiritualidade, são os lugares para onde o artista busca fugir.

O gênio romântico

O romantismo inaugura uma nova concepcao da criação artística e do criador: não se trata mais de habilidade ou domínio técnico. O artista deve ser, antes de tudo, um demiurgo, uma nova força cosmica inata, independente da cultura, que decifra de maneira intuitiva e direta o livro da natureza. Ele age sob o efeito da inspiração. E neste processo, a criação é o fruto da espontaneidade, pois que surge inteira no ato de criar. O valor da obra passa a residir em algo que nao esta nela objetiva e formalmente, e sim na subjetividade do autor: a sinceridade. O elemento de avaliação estética não é mais o estético.
O gênio não se deixa guiar pelas regras da tradição, pois cria a obra com base numa explosao, num surto irracional de sua emocionalidade profunda. E sua criação, por mais imperfeita que seja, na perspectiva das regras clássicas, será sempre a grande obra, porque exprime o estado de exaltação do criador com toda sinceridade. Não é à toa que o paradigma romântico fosse Shakespeare: “poder da natureza, na sua interioridade individual e grupal, pôde sobrepor-se a quaisquer canones ou peias tradicionais, criando graças a seu genio, uma dramaturgia irregular, inusitada e original".
O modelo romantico é um modelo de irregularidade, de desobediência e de liberação, ao passo que obra vale enquanto verdadeira e espontanea, expressão imediata e não raciocinada da alma do artista. O que é importante não é mais o objeto criado, mas o ato de criação e o sujeito craidor. Da obra passa-se a valorização do artista.
Em sua explosão subjetiva, o gênio é o porta-voz das mais altas esferas, o mensageiro divino, o herói mediador do infinito em meio à finitude. E este criador - que se recusa a imitar a natureza, porque a natureza está nele mesmo - é uma força natural.

Rousseau e o romantismo

Rousseau teve um papel fundamental no romantismo. Seu pessimismo profundo diante da sociedade e civilização, a idéia de uma natureza humana que vai sendo corrompida pela cultura conspiraram para elaboração da imagem do bom selvagem, do ser íntegro e primitivo é que deve figurar como ideal para o homem corrompido pela sociedade. Daí o interesse pelo exotismo e pelo indianismo e por aquilo que podemos chamar de "sentimento da natureza". Em Rousseau, o "sentimento da natureza está profundamente relacionado com uma atitude subjetivista, com o voltar-se para si mesmo. Tomando por base sua própria personalidade, Jean-Jacques começa a estudar o homem e sua relação com o mundo que o cerca. Ao fazê-lo, ensaia uma linguagem da natureza, da paixão e dos sonhos.

"Rousseau busca, assim, uma natureza humana selvagem, pura, sem a mácula causada pelo mundo corrompido pela civilização. É o famoso mito do bom selvagem, ser íntegro e primitivo, tão amplamente retomado pelos autores românticos. Esse homem está oculto no interior de cada homem, possui a essência de todos os homens, a liberdade. Mas, uma liberdade não apenas social, também emocional, sentimental."

Fonte: ROUSSEAU E O ROMANTISMO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES, de Érica Milaneze.
Ao estabelecer a necessidade de liberdade, de pensamentos, de palavras e da livre expressão da criatividade, rejeita as regras e modelos impostos pela razão em detrimento de uma maior simplicidade e franquezas estéticas. O homem se realiza na sensibilidade e na criatividade, liberando a inspiração original que verte das profundezas do ser. Novamente, percebemos características que serão retomadas pelos românticos: a liberdade estética e a inspiração como verdadeira fonte de expressão do gênio criador.

Desta forma, pode-se dizer que um dos pontos de partida da obra de Rousseau é a interioridade como sinônimo de sentimento, o que o contrapõe ao racionalismo do Século das Luzes. É no sentimento que se encontra a melhor tradução da interioridade humana, pois é no sentir-se que o homem mergulha em suas raízes de maneira mais livre. Há uma expansão do eu e da subjetividade, que será a base de todo pensamento romântico. O espírito romântico, já no século XIX, volta-se para a subjetividade, para a valorização dos sentimentos em todos os seus matizes, mas é no amor que encontramos sua grande expressão. O amor que para Jean-Jacques é também uma forma de ressaltar a essência primitiva do ser humano.

No entanto, ao falar de natureza, Rousseau não pressupõe apenas a natureza interna, mas também a natureza externa, o espaço físico externo. O homem deve procurar refletir sobre a natureza que o rodeia, o que essa natureza tem a lhe dizer, que sentimentos ela desperta em sua interioridade. Tem-se, assim, uma fusão do espírito humano com a natureza através de uma interiorização do espaço externo, ou seja, a natureza torna-se parte da alma humana. O espírito humano acaba por se alargar ao se fundir com um elemento puro, sem a mácula da mão humana corrompida pela sociedade.

A natureza mostra-se ao homem em todo seu esplendor e grandeza, é a natureza selvagem, cuja força impulsiona o movimento universal. Na famosa obra de Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, o caminhante solitário evoca a natureza em seus longos passeios, é nela que encontra seus maiores prazeres, pois sente essa natureza com todos seus sentidos, com todo seu ser. A natureza transforma-se em refúgio da solidão e sua harmonia sensibiliza a alma melancólica ao entrar em comunicação com Deus.

O sentimento da natureza manifesta-se no romantismo como extensão das idéias de Rousseau, na busca da solidão, seja pela procura de lugares distantes como o Novo Mundo, seja pela preferência por lugares pitorescos, grandiosos e selvagens. A natureza guarda algo de religioso, é a expressão concreta da divindade, representando um refúgio para a melancolia sentida. O espírito romântico busca, ainda, na natureza aquilo que está escondido, o mistério que se oculta por trás de sua grandeza e profundidade.

Observamos que as idéias de Rousseau tiveram forte influência na formação de todo o pensamento romântico e denotam um verdadeiro despertar da sensibilidade em um século em que a razão se impõe como base fundamental da sociedade e cultura.

Estética clássica



O clássico é sempre transparente, claro, racional e diurno. O conhecimento proporcionado pela razão nunca permite sombra ou dúvida. Ele é tão simplesmente solar. O ponto de partida da estética clássica é a idéia de que a natureza é concebida em termos de razão, regida por leis, e a obra de arte deve refletir necessariamente tal harmonia. A obra de arte é a imitação da natureza e, imitando-a, imita seu concerto harmonico, sua racionalidade profunda, as leis do universo.
No fundo, o pressuposto fulcral da estética clássica é a supressão da subjetividade, em nome de um sujeito dotado de razão - razão universal, bem entendido. Neste universo regido pela razão - faculdade do artista mas que não lhe é exclusiva - o artista desaparece por trás da obra. Ele e a sua subjetividade, porque afinal, a obra é que vale como tal e não pelo que ela diz de seu criador. Daí a importancia de procedimentos que assumem um carater de regra e normatização. Pode-se, portanto, afirmar que a arte classica nao quer diferenciar a individualidade: ela busca o típico e o geral; busca pelo universal.
Neste univejrso, o artista clássico é um mero artesão, seguindo regras estabelecidas as quais se conforma e se ajusta humildemente. E a obra clássica deve ser didática, deve veicular ensinamentos e verdades que elevem o conhecimento e contribuam para o aperfeicoamento do genero humano. A obra clássica fala à razão do espectador.

Romantismo

O aspecto mais importante do romantismo é a sua rebeldia contra a disciplina do gosto clássico, opondo-se, neste sentido, ao triunfo da razão e dos valores do Iluminismo. À razão que tudo conhece, o romantismo opõe a idéia de que a percepção do real depende do sujeito, conferindo grande importância a experiência individual e subjetiva. No limite, trata-se de estabelecer a oposição entre o racionalismo da ilustração e o subjetivismo romântico.
E que individualidade é esta que os românticos descobriram ? É o abismo insondável da vida interior, espiritual, profunda, onde reside o eu de cada um. A expressão artística tem por objetivo traduzir esta personalidade individual.
Supera-se assim a visão de mundo típica da estética neoclássica, de inspiração racionalista, por uma visão de mundo dominada pelo eu.

10 de março de 2010

Sade - trechos

Fonte: SADE, Filosofia na alcova.

"Deus é ora criado pelo medo, ora pela
fraqueza. Fantasma abominável, inútil ao sistema terrestre. Só poderia ser nocivo à vida: se a sua vontade fosse justa, nunca se poderia estar de acordo com as injustiças essenciais às leis da natureza. Deus deveria desejar somente o bem e a natureza só o deseja apenas como compensação do mal que está ao serviço das suas leis. Deus deveria agir continuamente e a natureza, cuja ação constante é lei fundamental, não poderia concorrer com ele em perpétua oposição. Dirão talvez: Deus e a natureza são a mesmo coisa. Que absurdo! Como pode a coisa criada ser igual à criadora? Como pode um relógio ser igual ao relojoeiro? Dirão ainda: a natureza não é nada e Deus é tudo. Outro absurdo: como negar que há necessariamente duas
coisas no universo, o agente criador e o indivíduo criado? Ora, qual o agente criador? Eis a única dificuldade a resolver, a única pergunta à qual é necessário responder. Se a matéria age, move-se por combinações que desconhecemos, se o movimento é inerente à natureza, se só ela pode, enfim, em razão de sua energia, criar, produzir, conservar, manter, mover nas planícies imensas do espaço todos os planetas cuja órbita uniforme nos surpreende, nos enche de respeito e admiração. Qual a necessidade de procurar um agente estranho a tudo isso, se essa faculdade ativa somente se encontra na própria natureza que não é outra coisa senão a matéria que age? A quimera desta virá esclarecer o mistério? Desafio que alguém me possa provar. Supondo que eu me engane sobre as faculdades internas da matéria, pelo menos
só terei uma dificuldade. Que farei eu com o Deus que me oferecem? É apenas uma dificuldade a mais."

(...)
Entretanto, não haverá certas ações absolutamente revoltantes e decididamente
criminosas, embora ditadas pela natureza? A natureza é tão singular nas suas produções quanto variada nas inclinações, e às vezes nos conduz a atos cruéis. Se, entregues à depravação, atentassemos à vida de um semelhante, tal ação não seria crime?
DOLMANCÉ - Qual, Eugênia, sendo a destruição uma das primeiras leis da natureza, tudo que destrói não pode ser crime. O que tão bem sirva à natureza não a pode ofender. Aliás essa destruição que lisonjeia o homem é uma quimera, o assassínio não é destruição; o assassino apenas varia a forma, faz voltar à natureza elementos dos quais ela se serve para recompensar outros seres. Aquele que mata prepara um gozo para a natureza, dando-lhe ocasião de criar; esses materiais, a natureza os emprega incontinenti e o assassino adquire um mérito a mais aos olhos desse agente universal. Só o nosso orgulho erigiu o assassinato em crime. Pensamos ser as
mais importantes criaturas do universo e imaginamos que destruir tão sublime criatura deve ser um crime enorme; pensamos que a natureza pereceria se nossa espécie desaparecesse da terra; a inteira destruição da nossa espécie, restituindo à natureza a faculdade criadora que ela dispendeu conosco, lhe daria uma energia que lhe tiramos com a propagação da espécie. Um soberano ambicioso pode, sem escrúpulo, destruir todos os inimigos nocivos aos seus projetos de grandeza; leis cruéis, arbitrárias, imperiosas, podem do mesmo modo assassinar em cada século
milhões de indivíduos, e nós, fracos particulares, não poderemos sacrificar um ou alguns seres à nossa vingança e ao nosso capricho? Nada mais bárbaro, mais ridículo. Sob o véu do mistério devemos nos vingar dessa inépcia.

Conceito de sadismo
Os prazeres da crueldade são os terceiros que prometemos analisar. Muito comuns entre os homens de hoje, eis os argumentos dos quais se servem para legitimá-los: o alvo das pessoas que se entregam à volúpia é ficarem excitadas; queremos nos excitar por meios mais ativos; assim sendo, pouco nos importa se nossos procedimentos agradarão ou não ao objetivo que serve; só se trata de pôr em movimento a massa dos nossos nervos pelo choque mais violento possível. Ora, como a dor afeta mais vivamente que o prazer, o choque resultante dessa sensação produzida sobre o parceiro será de vibração mais vigorosa e repercutirá mais energicamente em nós; o espírito animal entrará em circulação e inflamará os órgãos da volúpia predispondo-os ao mais intenso prazer. Ora, os efeitos do prazer são mais difíceis na mulher, um
homem feio ou velho jamais logrará produzi-los; por isso preferem a dor, cujas vibrações são mais ativas. Objetarão certamente: os homens que têm essa mania não refletem que é falta de caridade fazer sofrer o próximo, sobretudo para obter maior gozo? É que, nesse ato, os canalhas só pensam em si próprios, seguem o impulso da natureza e desde que gozem bastante o resto não lhes importa, nunca sentimos as dores alheias. Pelo contrário, ver sofrer, é uma grande sensação. Para que poupar um indivíduo com o qual não nos importamos? Essa dor não nos custará uma só lágrima e nos ocasionará um prazer. Haverá na natureza um só impulso que nos aconselhe preferir o próximo a nós mesmo?"

"A natureza não nos aconselha outra coisa senão que gozemos, que nos
divirtamos; não conhecemos outro impulso, outra aspiração. Nunca devemos nos incomodar com o que pode suceder aos outros... A natureza é a nossa mãe e só nos fala de nós mesmos, sua voz é a mais egoísta. O mais claro conselho que nos dá é que tratemos de gozar, de nos deleitar, mesmo a custo de quem quer que seja! Os outros nos podem fazer o mesmo, é verdade, mas o mais forte vencerá. A natureza nos criou para o estado primitivo de guerra, de destruição perpétua, único estado em que devemos permanecer para realizar seus fins. Eis, querida Eugênia, como raciocinam os libertinos; "

9 de março de 2010

Sade - para download de Justine.

http://sites.google.com/site/davidujsce/JustineouOsInfort%C3%BAniosDaVirtude-Marqu%C3%AAsdeSade.pdf?attredirects=0

Sade - Justine, uma análise

SADE, Marquês de. Justine ou os infortúnios da virtude. Rio de Janeiro, RJ: Saga, 1968


Carla Regina Françoia

Resumo

Se é verdade que a literatura descreve aquilo que a filosofia conceitua, Justine ou os infortúnios da virtude não escapa a esta afirmação e, mais, explicita de forma fiel a relação de Marquês de Sade com sua filosofia. Escrita em 1788, quando o Marquês já estava preso há cinco anos na Bastilha e um ano antes de ser transferido para Charenton, esta obra, como quase tudo escrito por Sade, revela suas idéias sobre a política, a igreja, o amor, a Providência Divina e o sexo aos olhos do materialismo a partir dos mais bizarros e infelizes desencontros na vida de uma jovem devota que abre mão de seguir sua irmã ao tornar-se órfã de pai e mãe. Julieta aventurou-se pelos caminhos da má conduta ao prazer de ser livre com o intuito de ser uma grande dama portadora de grande riqueza. Conseguiu, mesmo que para isto tenha se utilizado de subterfúgios, tais como: crime, roubo, mentira, prostituição entre outros modos de vida descritos nas obras de Marquês de Sade. Enquanto isto, Justine, ao contrário de Julieta, dotada das mais belas virtudes, cairia nas mais ardis situações que colocariam à prova sua crença na Providência e na bondade dos homens. Em momento algum abandonou o caminho do bem. Duas irmãs separadas pela vida e pelo temperamento encontram-se anos mais tarde, uma rica e a outra sendo condenada ao cadafalso.

Julieta e Justine, ambas figuras literárias que descrevem pela narrativa de suas vidas, num extremo e até mesmo repetitivo realismo, as aventuras defendidas por Marquês de Sade na sua filosofia libertina que vem iluminar os caminhos obscuros de que se serve a Providência para alcançar os fins que propõe ao homem.

Sem se reconhecerem à primeira vista, Justine, ao encontrar a Condessa de Lorsange, sua irmã, passa a contar para esta toda a história de sua vida, omitindo seu nome para não expor a família à vergonha, descreve todas as desgraças das quais fora acometida pela miserável vida que até então havia tido. Sendo o excesso uma das características da obra, a personagem virtuosa sadiana narra sua jornada entre o desespero e a esperança, entre a salvação e a perdição, entre o bem e o mal. Portanto a história que segue é a da virtude perseguida e sempre perecida, mas que ressurge novamente em um novo evento e do triunfo do vício que sempre prospera. Entretanto, Marquês, logo de início, adverte o leitor de sua obra qual é o verdadeiro intuito em descrever as infelicidades acabrunhadoras de Justine respeitadora da virtude e de Julieta, mulher que a menosprezou toda a vida. Vamos à obra para entender o que Sade busca apontar com as desventuras de sua heroína.

Como afirma Sade, é pela aprendizagem mais vergonhosa e mais dura é que estas senhoritas abrem seu caminho, sendo Justine repelida duas vezes no mesmo dia em que inicia sua jornada, pois buscava pela generosidade dos homens, Julieta procurou um outro caminho que a fez encontrar-se com o crime, prazeres vergonhosos, devassidão, vícios ocultos, gostos escandalosos e estranhos, fantasias humilhantes, mas que a fizeram reconhecer em si mesma o desejo por tais sentimentos, desejo de fruição e saciação pelas depravações em que colocou a serviço sua natureza, a princípio, e que logo após esqueceu completamente suas leis. Desta forma, aos quinze anos, quando já possuía fortuna, a personagem que reconheceu ter nascido para o crime não poupou artifícios para, cada vez mais, conseguir chegar onde somente alguém, como o Marquês descreve em toda a obra, que não está no caminho da virtude, mas num século tão corrompido e que permite, pela sua trajetória, a manutenção do equilíbrio entre o bem e o mal demonstrando nas suas ações levianas e libertinas que tudo podia e tudo alcançava. Pois é aí, nesta busca por meio do roubo, do assassinato, do infanticídio – Julieta abortou inúmeras vezes – que Julieta chegou à prosperidade e à felicidade. Mas Sade afirma também, que do mesmo modo que a prosperidade é possível por este caminho, ele faz alusão ao impedimento de usufruir desta felicidade pelas recorrentes recordações dos crimes cometidos. Enquanto há aquele em que a sorte é faltante que padece por viver de acordo com as leis que regem sua virtude não sofrem pela rememoração, antes, retiram suas alegrias de sua pureza, como é o caso de Justine.

Ora, parece paradoxal Marquês de Sade atribuir a uma libertina um comportamento que possui raízes na moral cristã que tanto nosso aristocrata ferozmente dedicou sua vida em combater. À primeira vista podemos dizer que é equivocada a leitura da obra de Sade pelo viés da culpa como no caso de Julieta. Vale lembrar que Sade foi um aristocrata perseguido tanto pela monarquia, pela revolução e por Napoleão e que viveu numa França assolada pela fome, pelo frio e pela indulgência de seu governante que, em Versalhes, vivia entre pompas e riquezas enquanto o povo perecia. Portanto, é preciso deixar em aberto, por enquanto, qual a intenção do autor, tido como libertino, criminoso e perseguido por comportamento desonroso ao colocar Julieta, atormentada pela culpa, alterar seu modo de vida talvez por atenção, procedimento ou sabedoria unindo-se a um gentil homem, Sr. De Corville.

Numa tarde de passeio, o casal, que já vivia a cinco anos juntos, encontrava-se num albergue para um momento de descanso quando, Julieta, já com trinta anos, vê uma jovem maltrapilha sendo carregada por guardas, pois era tida como uma criminosa condenada. Ao se compadecer pela pobre criatura pede para que fique aos seus cuidados e que conte a história que a fez chegar neste estado de comiseração em que se encontrava. Aqui começa a narrativa de Justine, que se apresenta como Sofia e passa a contar a história de seus infortúnios.

Seus encontros revelam a partir dos seus diálogos de modo repetido o que se chama então a filosofia sadiana. Isto é, os diálogos de Justine com seus interlocutores falam sobre o governo, a igreja, a moral, relacionamentos familiares, troca de favores, mentira, crime, entre muitas outras coisas importantes ao que se propõe o Marquês criticar e explicitar. O que vale ressaltar é a riqueza da narrativa que nos permite reconhecer a obra e sua radicalidade.

Contava já com quatorze anos, pobre e desprezada, foi pedir emprego a um rico comerciante da capital que a aconselha procurar a sorte em casa de todos os libertinos. E assim inicia-se um diálogo que prevalece como tema o orgulho, a bondade, as paixões e a satisfação.

Prepõe-lhe abrir mão de sua condição virtuosa e entregar-se a seus criados para que fosse submetida num cerimonial libertino. Assim, desespera-se pela execrável proposta retorna entristecida a seu minúsculo quarto alugado e cai em sombrias reflexões sobre a crueldade e corrupção dos homens. Sade nos diz pela boca de tal homem: nossas paixões só têm encanto quando transgridem o melhor das suas intenções. Num outro momento, encontra-se vítima da avareza e do engano numa casa em que fora trabalhar. Acusada pelo dono da casa por roubo, Justine foi vítima de uma vingança por não ter aceitado a proposta de seu patrão para furtar um terceiro, portador de muitas jóias. E, sem a menor possibilidade de se defender, é condenada e então Justine reconhece: estava escrito nas páginas do meu destino que a cada um dos meus atos de honestidade a que me levava meu caráter corresponderia, em contraposição, uma infelicidade.

A cada encontro, cada movimento seu regido pela pureza do caráter, pela virtude era condenada, maltratada, acusada. A jornada de Justine será sempre marcada desta forma, o infortúnio pela má sorte para logo em seguida encontrar-se com uma saída satisfatória para seu sofrimento, mas imediatamente a um esboço de alegria, novamente um infortúnio.

É preciso tentar compreender na obra qual a intenção desses desencontros todos. Após o tema da avareza, chegou à condenação de Justine pela justiça que não lhe deu crédito algum, por onde Sade afirma pela voz da heroína que fugiu da cadeia por meio de um incêndio proposital: Crê-se na virtude como que incompatível com a miséria... e como títulos ou fortuna provam a honestidade ficou impossível a esta pobre miserável defender-se, apenas a chance de tentar a vida em um outro lugar. Isto é, Justine torna-se uma fugitiva da justiça dos homens.

A natureza nos fez nascer todos iguais, Sofia. E se a sorte teima em desorganizar o primeiro plano das leis gerais, cabe a nós corrigir os seus caprichos e sermos hábeis para usurpar os mais fortes...

A cada nova aventura, Justine encontrava pessoas dotadas de má índole que tentavam convencê-la de que ela era mais condenada por ocupar-se de seus interesses pelo caminho da virtude e da honestidade e menos acolhida pela Providência que tanto amava e respeitava: o que tenho sofrido Vos adorando me torne digna de um dia receber as recompensas que tendes prometidos aos fracos. É possível retirar desta obra, a partir dos diálogos, uma ética? É realmente uma crítica violenta e purulenta que Marquês ergue a França pré-revolução. Ou, é apenas um homem libertino que está, em forma de romance, transmitindo aos franceses receitas de deboche, escárnio e corrupção? Talvez seja a união destas idéias que fundamenta tal obra, pois Sade descreve as fatalidades de uma jovem que não sonhava com riquezas, apenas buscava um meio de viver honestamente, e que, a cada encontro, colocava a jovem caindo aos pés de seus algozes implorando clemência e piedade, numa cena patética e humilhante, onde era ridicularizada e menosprezada.

Apaixona-se por um pederasta que a acolhe em casa pedindolhe que reconheça o bem que a fez com tal ação, para logo após proporlhe que ajude a matar sua mãe, pois desejava a herança antes do tempo natural que rege a vida e a morte. Nega-se terminantemente, para depois aceitar movida pelo intuito de salvar a coitada. É pega na traição, a mãe do Marquês de Bressac é morta por ele. Justine termina a cena sendo acusada de assassinato deixando para traz seus pertences particulares e ainda leva chicotadas. Ouve de seu amante matricida: agora preciso te punir, ensinar-te que o caminho da virtude nem sempre é o melhor e que há certas situações na vida onde é preferível a cumplicidade de um crime à sua delação...tu imaginavas que seria capaz de me deter algum sentimento de piedade, que só posso trazer no meu coração se assim exigirem os interesses dos meus prazeres ou alguns sentimentos de religião, que não vacilo em pisotear?

Há um argumento que vale a pena apresentar aqui. Ao clamar que tal sujeito volte atrás na idéia de matar sua mãe, Justine o faz pelo viés da religião. O Sr. De Bressac diz que Deus existe não pela prova cabal de sua existência, mas sim pela ignorância daqueles que assim pensam, e que as religiões carregam em si mesmas o emblema da impostura e da estupidez. Marquês de Sade está afrontando o clero de sua época – um dos motivos que durante tantos anos esta obra literária foi proibida na França – e sua crítica se faz no transcorrer do livro tanto a igreja, como a lei moral cristã, usada como meio de manipular os miseráveis e beneficiar a si própria e o quanto àqueles que são seus ordenadores são em suas essências os piores dos libertinos. Por isso, um dos eventos narrado com maior riqueza de detalhes e tomando grande parte da obra é quando esta infeliz chega ao convento Santa Maria dos Bosques.

Acreditou que ali encontraria a recompensa de que tanto havia clamado a Providência Divina. Ledo engano. Pois foi neste lugar que sem piedade fora vítima de uma furiosa violação pelo Padre Antônio e obrigada a participar de cerimônias libertinas, rituais de devassidão aos pés das imagens sacras junto com mais sete mulheres enclausuradas por quatro Padres devassos. E lá permaneceu durante anos sendo obrigada a cometer os mais violentos atentados à sua crença sagrada para atender as fantasias e as violações de todas as leis naturais. Mesmo assim, não abandonou os seus sentimentos de religiosidade.

Parte para um outro evento cruel. Por ser pobre, passa a ser tratada como fraca e, portanto, mantida como escrava por um Senhor que durante muitas noites vinha procurá-la para saciar seu apetite sexual. O seu argumento era que o homem é, pois, naturalmente mau, e o que é quase tanto delírio de suas paixões como nos seus momentos de calma, e há casos em que os males do seu semelhante podem vir a ser um prazer abjeto para ele.

Enfim, são vários os caminhos tortuosos por que passa a heroína da obra até encontrar-se com sua irmã e, então, poder encontrar-se com a recompensa divina por não ter desistido de acreditar na Providência dos céus. Morre, logo após algum tempo por um raio que percorre seu corpo deixando-a desfigurada.

Cena impressionante que toma Julieta e a faz abandonar sua vida atual, mais uma vez, para espiar seus pecados aos pés do Eterno. Uma mulher mundana corrigida pelo tempo, arrependida de seus crimes, vai para a ordem das carmelitas tornando-se modelo e exemplo de bondade e piedade. Surpreendente é tomar esta obra por ela mesma, sem buscar noutro lugar o Marquês de Sade. Ao ler os diálogos e as descrições que Sade faz da vida humana, fica fácil entender por que esta obra é considerada como o melhor romance do autor.

Como logo no início Marquês nos pede que pela boa-fé possamos dar atenção misturada com interesse pelo que será narrado, a obra toda, do começo ao fim, é uma crítica acirrada tanto à justiça que só toma o homem próspero como o correto, o bom, quanto para a igreja, com sua falsa moral cristã, da liberdade roubada do fraco pela mão do mais forte, das ações criminosas para se alcançar de qualquer modo um fim desejado, dos vícios como contrapartida da virtude, do carrasco impiedoso com sua vítima. Não obstante, tomados estes exemplos não como desvio da regra, mas como a descrição fiel da natureza humana.

Sade, um ateu? Não, não é isto que o Marquês quer apontar com a crença muitas vezes desvairada de Justine que beira ao patético, em cada vã situação que se encontra e no modo como manejava sua conduta. Como afirma

Carpeaux no prefácio do livro, podemos chamar Sade de ateu exatamente como aquele que nega não a existência de Deus, pois Julieta é um elogio a isto, mas como quem nega sua moral. Ou melhor, a moral criada pela religião que por sua vez é uma criação humana. Marquês fala de política, de moral, ética, descrevendo assim aquilo que se tentava encobrir, mas que é a raiz dos poderes, a tenebrosa natureza humana.