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17 de março de 2010

Baudelaire e o tempo da modernidade, segundo Foucault

Fonte:
MURICY, Katia. O heroísmo presente. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 31-44, outubro de 1995.

"Em resumo, através do texto de Kant, Foucault apresenta a sua concepção
da modernidade não como período histórico mas como atitude. Por
atitude ele entende um modo de relação com respeito à atualidade; uma determinada
escolha voluntária feita por indivíduos; uma maneira de pensar, sentir,
agir e conduzir-se que demarca o pertencer a uma época e que é proposta
como uma “tarefa”. Para caracterizar esta atitude moderna, Foucault toma o
exemplo “quase necessário” de Baudelaire, “reconhecidamente uma das
consciências mais agudas da modernidade no século XIX”. Baudelaire, que
afirmava “vous n’avez pas le droit de mépriser le présent”, via a modernidade
como uma forma de relação com o presente e como uma forma de relação
consigo mesmo, no espaço da arte.
A modernidade de Baudelaire, para Foucault, refere-se primeiramente
a uma atitude em relação à percepção do tempo. A característica atribuída
habitualmente à modernidade - a consciência da descontinuidade do tempo
relacionada à ruptura com a tradição, a erupção da novidade e a experiência
da fugacidade dos acontecimentos - não basta para se compreender a
modernidade de Baudelaire. Se o poeta define a modernidade como “o transitório,
o fugidio, o contingente”, a atitude moderna que Foucault encontra em
Baudelaire é aquela que o leva a não simplesmente constatar e se contentar
com esta apreensão da descontinuidade do tempo. É, ao contrário, uma tomada
de posição que, de certo modo, se opõe à transitoriedade. Consiste em
procurar, por uma decisão da vontade, construir uma eternidade muito particular.
Este conceito de eterno não busca eleger uma atemporalidade, projetada
no passado ou no futuro, mas em circunscrever-se no instante presente.
A modernidade de Baudelaire seria a de não aceitar o curso do tempo
e por uma atitude voluntária, construí-lo, submetendo-o a este ato de vontade.
É por esta decisão da vontade que Baudelaire irá encontrar o heróico. A
modernidade de Baudelaire não seria apenas uma sensibilidade ao presente
transitório, fugidio, mas uma decisão, uma atitude firme de heroificar o
presente."

"Foucault observa que a heroificação é irônica. Não se trata de uma
sacralização do presente, do instante, para perpetuá-lo. Mas também não se
trata, sobretudo, de arquivá-lo como curiosidade fugidia. Esta segunda atitude
seria própria do flâneur que tem algo de veleidade na atitude de colecionador
de lembranças que lhe permite fugir da atualidade, das circunstâncias.
Nem sacralizar o instante, nem apanhá-lo como curiosidade A atitude do moderno
é a busca da modernidade entendida por Baudelaire como “dégager de
la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique”."

"Foucault cita a conhecida crítica de Baudelaire aos pintores seus
contemporâneos que representavam os personagens do século XIX vestidos
com togas da Antiguidade por acharem as roupas modernas indignas de serem
representadas. Mas Baudelaire não acha que basta substituir togas pelos ternos
pretos. O pintor moderno deve, além de pintar os personagens com ternos
pretos, mostrar esses trajes como “a vestimenta necessária da nossa época”
e isto porque o preto das roupas revelaria em uma alegoria, o essencial luto, a
relação obsessiva da nossa época com a morte.Constantin Guys não é, embora
aparente, um flâneur. Ele é o que trabalha arduamente quando todos dormem,
à noite - este tempo subtraído do fluxo produtivo capitalista - transfigurando
o mundo, o real. Um duelo que não pretende anular este real mas estabelecer
um jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade. Para
Baudelaire, as coisas naturais tornam-se nos desenhos de Constantin Guys
“mais que naturais”, as coisas belas “mais que belas”."

"Baudelaire concebia a modernidade como algo mais do que uma
relação específica com o presente. Concebia-a também como uma forma de
relação que se deve construir consigo mesmo. Esta forma moderna de relacionar-
se consigo mesmo é o ascetismo. O eu moderno é, em conseqüência mesmo
da atitude de construção do tempo, também objeto de uma construção. Há
em Baudelaire uma recusa em aceitar o eu por assim dizer natural que existe
no fluxo dos momentos. Este esforço árduo de construção de si Baudelaire
chama de dandismo. O ascetismo do dândi, “de seu corpo, de seu comportamento,
de seus sentimentos e paixões, faz de sua existência uma obra de
arte”. Foucault escreve, aludindo mais uma vez ao seu próprio projeto filosófico,
“o homem moderno, para Baudelaire, não é o que parte para a descoberta
de si mesmo, de seus segredos e de sua verdade escondida; é o que
procura inventar-se a si próprio. Esta modernidade não “libera o ser próprio
do homem”; ela o obriga à tarefa de se elaborar a si próprio”
(Foucault, 1984a, p. 42). Foucault termina suas poucas páginas sobre
Baudelaire observando que a heroificação do presente, o jogo da liberdade
com o real, a elaboração ascética de si não tem lugar na sociedade ou na política,
mas a atitude moderna só pode ser vivida “no que Baudelaire chama arte”."

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